Foto-João Ferraz
A CHAVE
Célia Pires
Procura nervosamente elos com a realidade. Abre a gaveta da cômoda e retira um disco. Bolero de Ravel. Um pó de arroz já completamente ressecado pelo tempo assim como ela. Um batom inacabado como tantas coisas que deixou inacabada em sua vida. Papel de bombom amarelecido. Elos com com uma realidade já passada! Procura pela chave. Não encontra. Chora. Como viera parar ali? Como deixou alguém cortar-lhe as asas da liberdade? Não sabia dizer se a culpa fora da vida que lhe roubara os sonhos e lhe castrara a felicidade que um dia pensou em encontrar. Mas onde está a maldita chave?
Procura um espelho e fita o rosto como se o estivesse vendo pela primeira vez. Descobre sinais em relevo: rugas feitas pelo tempo. Mas vê nos olhos lampejos de esperança, e percebe que não era apenas uma estrela que caiu. Possuia ainda cinzas de um brilho que poderia ser reacendido. Mas cadê a chave? Cadê a chave meu Deus?
Não era alegre. Não era triste. Muito menos poeta como diriam. Era como a chamavam: de 'maluketa' do quarto 17, a louca no meio de tanta gente também com a sanidade abalada. Sim, morava num manicômio, mas o que aconteceu para que viesse parar ali, isso era incompreensível para ela. Cadê a chave?
Se distrai.Ouve música. Alguém tocava piano, e por alguns instantes deixa-se embalar pela doce música, mas de repente caiu o silêncio e ela volta a pensar sobre si mesma. A solução estava na chave. Precisava encontrá-la.
Resolve passear pela jardim do manicômio. Quando sai do quarto é tomada, quase assaltada pelo cheiro das violetas e rosas. Deixa o aroma entrar pelo pulmão adentro. Deixa-se inebriar pelo frescor. Vai caminhando até que se depara com o portão do hospital. A chave lá estava. Gira-a como se girasse a roda da salvação. Mas o portão está aberto. A chave agora se transforma em vontade de voltar a viver. Corre para as ruas como quem corre para a vida. Abandona o manicômio como quem abandona um mundo rotulado, e se volta para as ruas para receber as boas-vindas de um mendigo que passava.Não sabe se abandonou algo de bom. Só sabe que não pode continuar ali. Vira definitivamente as costas para aquilo tudo, sem saber no que podia dar certo, mas seu espirito ansiava por nutrir-se de liberdade. Começa a andar vagarosamente pelas ruas da cidade e não vê diferença entre o seu mundo e essa loucura que é o mundo aqui fora.Está pronta para enfrentar tudo, mas por via das dúvidas traz consigo a chave. A chave...
quinta-feira, 8 de abril de 2010
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